5/4/21

 PRÓCLISE, MESÓCLISE E ÊNCLISE

A primeira vez em que percebi que a língua poderia ser objeto de humor foi quando ouvi que dois homens procuraram um mestre gramático para resolver uma contenda. O primeiro garantia que o carro em que estavam se atolou. O outro insistia: o carro atolou-se.  O sábio elucidou a questão:

– Se foi com as rodas da frente, se atolou. Se foi com as de trás, atolou-se.

Ali estavam a próclise e a ênclise em toda a sua concretude, apoiando o pronome átono à frente do verbo ou por trás dele.

O problema é que eu nunca tinha ouvido falar em próclise, ênclise, pronome átono. Eu apoiava (ou atolava) o pronome onde me soava melhor, onde meu ouvido já estava mais acostumado.

Primeiro, foi preciso aprender que havia pronomes retos e oblíquos. Isso de misturar gramática e geometria foi outra revelação. Como pronomes poderiam ser inclinados, perpendiculares? Pois podiam: os do caso reto (eu, tu, ele/ela, nós, vós, eles/elas) tinham a prerrogativa de ser sujeito; os do caso oblíquo serviam só de complemento.

A próclise e a ênclise eram colocações dos oblíquos átonos (sim, tinha mais essa: os oblíquos podiam ser átonos ou tônicos).

Para o átono “me”, havia os tônicos “mim” e “comigo”. Para o “te”, havia “ti” e “contigo”. Na pirâmide social – imaginava – “eu” viria no topo; “me” estaria no meio; “mim/comigo”, ao rés do chão. Até porque “mim” nunca era sujeito, não conseguia andar sem preposição e sempre vinha (ou era impressão minha?) no final da frase.

O pronome átono não tem esse nome à toa: é sem tônus, sem vigor. Ele se deixa seduzir facilmente. É atraído pelos advérbios (“Aqui se faz, aqui se paga”).  Pelas partículas negativas (“Não me venhas de borzeguins ao leito! ”, “Nunca te vi, sempre te amei”, “Nem te ligo, farinha de trigo! ”). Pelos pronomes substantivos (“Todos se dão bem; só eu não tenho ninguém”). Pelos pronomes relativos (“Eles que se cuidem”). Por preposição seguida de gerúndio (“Em se plantando, tudo dá”). 

No Brasil, somos muito proclíticos. Mesmo quando deveria haver ênclise, a próclise nos soa melhor.

“Vou te contar, os olhos já não podem ver coisas que só o coração pode entender” era para ter uma ênclise, mas cadê?

“Me dê motivo pra ir embora, estou vendo a hora de te perder” também pedia ênclise. 

(Reza a lenda que o décimo primeiro mandamento era “Não começarás oração com pronome oblíquo”, mas ficou de fora porque iria desbancar o “Não cobiçarás a mulher do próximo” no quesito de popularidade nas confissões.)

A ênclise, coitada, acabou ficando para os verbos no imperativo afirmativo (“Ora, faça-me o favor! ”) e olhe lá. 

Mais rara que ela, só a mesóclise, que é quando o pronome átono não vem antes nem depois, em cima nem embaixo, mas enxertado no verbo. É que, muito antigamente, o futuro e o condicional (futuro do pretérito) eram compostos do verbo principal no infinitivo + o verbo “haver”.

“Terei” se formou de “ter” + “hei”; “teria”, de “ter” + “havia”. A mesóclise dar-se-á quando o pronome átono se enfiar entre as duas partes – por isso ela só existe nos tempos verbais em que há essa brecha.

Voltando ao catedrático do primeiro parágrafo, a história do carro atolado não acabava por ali. 

– Mestre, e se foi com as quatro rodas? 

– Então se atolou-se. 

Não, a proênclise só existe na piada – assim como a mesóclise só existiu, neste século, nos discursos de um ex-presidente. O que é uma pena, porque essa polifonia dos pronomes átonos e tônicos, esse balé dos pronomes retos e oblíquos, deixava muito mais refinado o idioma.

___________________

EDUARDO AFFONSO

Arquiteto, escritor e colunista do jornal "O Globo".

Língua e Tradição. Educación. 07/02/2021. Página no Facebook [O objetivo desta página é, sobretudo, ressaltar a importância do estudo e ensino da gramática tradicional da Língua Portuguesa,  sem ignorar os avanços e inovações da Linguística]. https://www.facebook.com/story.php?story_fbid=241738567574757&id=102515961497019 

No hay comentarios:

Publicar un comentario

Venha sempre nos visitar! E Obrigada por deixar seu comentario!!