29/8/21

 Língua, ideologia e empoderamento

 Erika de Moraes*,

 O Estado de S.Paulo

05 de maio de 2016 | 20h11

O Dia da Língua Portuguesa é uma oportunidade para refletirmos sobre o significado social e político da linguagem em nossas vidas. Língua (não só a portuguesa) não se resume a um conjunto de normas de padronização (embora tais normas tenham funções importantes em termos de unidade e historicidade). 

Dizer que a língua não se resume às normas não implica negá-las ou minimizar a importância de aprendê-las, mas mostrar que seu conceito é muito mais amplo. Tomemos como exemplo o tema da aprovação, por deputados do Estado de Alagoas, de lei que obrigaria professores a manter ‘neutralidade’ em sala de aula, impedindo-os de ‘doutrinar’ alunos em assuntos políticos, religiosos e ideológicos. Além da inconstitucionalidade, que pode ser discutida em âmbito jurídico, tal lei parte de um pressuposto equivocado, o de que existiria uma forma de linguagem desprovida de ideologia. 

Com o nome ‘Escola Livre’, uma lei como essa, a rigor, imprime a censura nas salas de aula. Assim como a censura durante a ditadura militar instituía-se de forma arbitrária, somente por meio da arbitrariedade é possível decidir o que é ou não ideológico do ponto de vista linguístico-discursivo. Para quem se alinha a uma ideologia mais à direita, propostas voltadas ao social, à abertura de oportunidades mais igualitárias são vistas como ideológicas, esquerdistas, assistencialistas. Já para quem se identifica com ideias mais à esquerda, qualquer proposta que faça lembrar argumentos da direita - um exemplo, a defesa da meritocracia - será vista como equivocada e demonizada. 

Ora, qual a ideia certa? Qual a errada? Equivocado é acreditar que exista uma visão ideológica, outra neutra. Errado, de um ponto de vista teórico-científico, é supor que exista alguma maneira de interagir com a língua desprovida de ideologia. Digo interagir (e não usar) porque a língua não é mera ferramenta, é elemento constitutivo da identidade dos sujeitos. É por meio dela (seja qual for o idioma) que o ser humano significa sua própria existência e o mundo ao seu redor. É por isso que o domínio pleno da língua materna é empoderador. E, provavelmente, é pela mesma razão que a valorização do ensino e do professor seja tão precária em nosso país (é preciso vontade política de empoderar). 

Num Estado democrático e laico, os pensamentos religiosos e políticos devem ser livremente debatidos e opiniões divergentes devem ser respeitadas. Acreditar, porém, que existam argumentos neutros é pura falácia. A língua não é um instrumento promotor de ideologia, ela é ideologia, é vida. E isso não é um mal, é uma característica, da mesma natureza que o respirar. É redundante, portanto, dizer que alguém se comunica ideologicamente por meio da língua. 

Em celebração ao dia da língua, tento mostrar que ela é assunto muito mais interessante - sério e necessário - do que fazem parecer os simples lamentos de que a mal tratamos com concordâncias equivocadas. Não defendo equívocos normativos - em cerca de doze anos de ensino fundamental e médio, as escolas deveriam ter condições para corrigi-los. Mais grave, porém, é essa visão deturpada do que seja linguagem, a exemplo de como a veem os deputados de Alagoas. Infelizmente, eles não estão sozinhos. 

 

* Érika de Moraes, doutora em Linguística, com ênfase em Análise do Discurso, pelo Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, é professora da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Unesp de Bauru


https://www.estadao.com.br/noticias/geral,analise---lingua--ideologia-e-empoderamento,10000049395

 

16/8/21

Educação
Ideologia

Elx, el@s, todxs? Na língua portuguesa, sem gênero neutro: apenas masculino e feminino 

De acordo com a linguística, substituir masculino e feminino por um gênero neutro não funciona 

Por Andressa Muniz, especial para a Gazeta do Povo 
02/01/2018 15:10


Na transição do latim para o português, a semelhança entre masculino e neutro fez com que ambas as categorias fossem resumidas em uma.| Foto: Daniel Castellano / Arquivo Gazeta do Povo.

“Elxs, el@s, todxs, tod@s, meninxs, menin@s” – a tentativa de eliminar preconceitos se reflete também em uma tentativa de mudar a língua portuguesa. Em uma iniciativa impulsionada por movimentos sociais, os discursos que se referem a um grupo de pessoas são modificados para não usarem o plural masculino – “eles”, “todos”, “meninos” – mas sim uma marcação de gênero neutro que substitui a terminação “o” por “x” ou “@”. 

Apesar das intenções de democratizar a língua portuguesa, o modelo quase não tem apoio científico. De acordo com a linguística: substituir masculino e feminino por um gênero neutro não é algo que funciona na língua portuguesa. Pelo menos não do modo como é discutido pelos movimentos sociais. 

Origens 

Segundo pesquisadores da área, usar o gênero masculino para se referir a um grupo de pessoas, homens e mulheres, não é uma forma de preconceito. A origem desse uso estaria no latim – que lançou as bases da língua portuguesa e de outras línguas latinas, como o francês e o espanhol. 

Assim, se o que é visto como gênero masculino, na verdade é um gênero neutro, não há prevalência do masculino nos discursos - o ponto que seria criticado ao sugerir a substituição de “o” por “x”, por exemplo. O único gênero que recebe marcação na língua portuguesa é o feminino. 

É isso que aponta o linguista Joaquim Mattoso Câmara Jr., em pesquisas sobre linguagem desenvolvidas desde a década de 1940. No artigo “Considerações sobre o gênero em português”, um dos principais trabalhos produzidos no Brasil sobre o tema, o linguista explica que o gênero feminino é, em português, uma particularização do masculino. Essa particularização é feita pela terminação “a”, que é diferente da terminação neutra “o”. 

Recentemente o pesquisador e professor da Unicamp Sirio Posseti destacou que a única marcação de gênero é o feminino. “Os nomes [substantivos] com marca de gênero, em português, coincidem exatamente com os que estamos acostumados a considerar femininos. Os outros casos, todos, seriam considerados sem gênero (inclusive os nomes considerados masculinos)”, diz. 

“É por isso que dizemos ‘o circo tem dez leões’ mesmo que tenha cinco leões e cinco leoas, mas não dizemos, no mesmo caso, que tem dez leoas. Também é por isso que se pode dizer que ‘todos nascem iguais em direitos...’, o que inclui as mulheres, mas não se incluiriam os homens se a forma fosse ‘todas nascem iguais em direitos...’.”, explica Posseti. 

Essa regra, chamada por pesquisadores da área de “masculino genérico”, surge nas origens da língua portuguesa. No latim, as palavras podiam receber três marcações de gênero: feminino, masculino e neutro – este último com a terminação “u”. Na transição do latim para o português, a semelhança entre masculino e neutro fez com que ambas as categorias fossem resumidas em uma só, que hoje entendemos como masculino. 

Polêmica global 

Uma discussão similar acontece na França: o movimento “Écriture Inclusive” (“Escrita Inclusiva”, em português) defende que a língua francesa é intrinsecamente machista e reivindica a adoção de gênero neutro como uma tentativa de combater o suposto preconceito. 

Um dos grupos por trás do movimento, “Mot-Clés” (“Palavras-chave”), diz que o francês é uma “língua falocêntrica” por favorecer o uso do masculino genérico. De acordo com o grupo, a mudança no uso da língua francesa seria um modo de “realmente mudar as mentalidades” das pessoas no país. 

No país, as críticas ao movimento apontam o caráter pouco prático de uma mudança profunda e artificial em uma das línguas mais faladas no mundo. A L'Académie française, organização encarregada de julgar assuntos relacionadas à língua francesa e que funciona de modo similar à Academia Brasileira de Letras, declarou que a escrita inclusiva representa um “perigo mortal” para a língua francesa

“Frente a essa aberração ‘inclusiva’, a língua francesa está agora em perigo mortal, pelo qual nossa nação é responsável agora para as gerações futuras”, declararam os imortais da L'Académie française. 

“Já é difícil aprender um idioma, como será se o uso acrescentar formas secundárias e alteradas? Como as gerações futuras crescerão com intimidade com nossa herança escrita? Quanto às promessas de um mundo francófono, elas serão destruídas se a língua francesa se enfraquecer com este aumento de complexidade, beneficiando outras línguas que se aproveitarão para prevalecer no planeta”, completou a entidade. 

Fonte:  https://www.gazetadopovo.com.br/educacao/elx-els-todxs-na-lingua-portuguesa-sem-genero-neutro-apenas-masculino-e-feminino-bm8jcy7i87jfe7geodpop4cbg/

Veja a origem de 10 expressões da língua portuguesa

Você certamente já usou uma ou outra expressão dessa lista a torto e a direito, mas será que você conhece a origem por trás delas? Para não te deixar com a pulga atrás da orelha, a SUPER te traz a curiosa história de dez expressões da língua portuguesa que costumamos utilizar no nosso dia-a-dia. 1. Santo do Pau Oco Hoje utilizamos a expressão “santo do pau oco” para designar pessoas dissimuladas, mas a origem dessa expressão é histórica e subversiva. No auge da mineração no Brasil, no período colonial, os impostos sobre o ouro e outros metais e pedras preciosas eram altíssimos. Para burlar esse esquema, imagens santas de madeira oca eram produzidas e depois recheadas de bens preciosos, como o ouro em pó. Desse modo, era possível passar pelas Casas de Fundição sem pagar os abusivos impostos à Coroa. Não é à toa que uma imagem sagrada que esconde vil metal virou sinônimo de falsidade e hipocrisia. 2. Amigo da onça A expressão “amigo da onça” tem origem em uma velha anedota, famosa nos anos 40, que vai mais ou menos assim: “Dois caçadores estão conversando: – O que você faria se estivesse na selva e aparecesse uma onça na sua frente? – Dava um tiro nela. – E se você não tivesse uma arma de fogo? – Furava ela com minha peixeira. – E se você não tivesse uma peixeira? – Pegava qualquer coisa, como um grosso pedaço de pau, para me defender. – E se não encontrasse um pedaço de pau? – Subia numa árvore – E se não tivesse nenhuma árvore por perto? – Saía correndo. – E se suas pernas ficassem paralisadas de medo? Nisso, o outro perdeu a paciência e explodiu: – Peraí! Você é meu amigo ou amigo da onça?” A expressão foi popularizada com a criação do “Amigo da Onça”, personagem do chargista Péricles Andrade Maranhão para a revista O Cruzeiro, cuja página foi a mais lida no período de sua publicação entre 1943 até 1961. O famoso personagem era irônico e crítico dos costumes brasileiros, e procurava sempre levar vantagem sobre os outros, além de viver colocando os amigos em situações perigosas ou embaraçosas. Seu nome acabou sendo, então, a inspiração para a expressão usada até hoje, de quando falamos daquele amigo sacana e falso. 3. Chorar as pitangas Essa expressão vem do início do processo de colonização do Brasil, quando houve um choque cultural entre os portugueses e os indígenas que viviam por aqui. Segundo os historiadores, os portugueses enfrentaram algumas dificuldades na nova terra e por isso buscaram incorporar alguns costumes dos índios. Com isso se deu início a diversas trocas culturais, inclusive de expressões que perpetuaram em nosso cotidiano. Bem, parece que a adaptação dos colonos por aqui não foi fácil, já que a expressão lusitana “chorar lágrimas de sangue” era bem usada por eles. Para os índios, porém, a fala não fazia muito sentido, tanto que tiveram que fazer uma adaptação. No caso, a palavra “sangue” foi substituída por “pitanga”, palavra derivada de “pyrang” que significa “vermelho” em tupi. Como quando se chora muito os olhos ficam vermelhos, nasceu a relação entre o chororô e a frutinha cor de sangue nativa da Mata Atlântica brasileira. 4. Ovelha negra A expressão “ovelha negra” é bastante usada, não só no Brasil, para designar alguém que destoa de um grupo, que não se encaixa por causa de diferenças. Quando usamos a expressão “ovelha negra da família”, estamos falando daquela pessoa que é diferente do resto de seus parentes: aquele filho tido como rebelde ou o que se destoa por suas atitudes e visões de mundo tidas como errôneas. A expressão surgiu com o pastoreio: apesar da maioria das ovelhas serem brancas, as vezes nascia um espécime preto, mais difícil de cuidar e que não acompanhava os outros animais. A preferência pela ovelha branca também tinha valor econômico, já que a lã branca podia ser tingida e assim tinha mais valor no mercado. O motivo do significado negativo da expressão também vem de antigas crenças de algumas religiões pagãs. Segundo essas crenças, todos os animais pretos eram maléficos, e muitas vezes eram sacrificados em homenagem aos deuses. 5. Acabou em pizza Essa expressão, bastante utilizada no meio político, é bem conhecida por nós: quantas vezes vimos uma situação mal explicada acabar em pizza, ou seja, sem que ninguém fosse punido ou responsabilizado? Por incrível que pareça, a origem desta expressão não veio da política, e sim do futebol. Aconteceu na década de 60, quando alguns cartolas palmeirenses ficaram 14 horas seguidas trancados numa reunião discutindo e brigando. No final estavam todos mortos de fome e resolveram ir a uma pizzaria, onde pediram 18 pizzas gigantes e muito chope. Depois de toda comilança e álcool, todos foram para casa, as brigas acabaram e não houve mais discussão. O episódio foi documentado pelo jornalista Milton Peruzzi na Gazeta Esportiva com a seguinte manchete: “Crise do Palmeiras termina em pizza”. 6. Rodar a baiana Quem “roda a baiana” é o tipo de pessoa que não leva desaforo pra casa. “Rodar a baiana” significa fazer um barraco, tirar satisfações de forma geralmente escandalosa. Quando você se deparar com aquela pessoa “barraqueira”, que roda a baiana por qualquer coisa, lembre-se das baianas no carnaval do Rio de Janeiro. Sim, porque a expressão não veio da Bahia como se possa imaginar, e sim dos desfiles de carnaval do século 20, onde as baianas eram figuras de destaque. Já naquela época elas enfrentavam um problema nada fácil de lidar: alguns rapazes tascavam beliscões nos bumbuns das moças, que não tinham como se defender. Para colocar um fim nessa situação desagradável, alguns capoeiristas passavam-se por seguranças delas, e se fantasiavam de baianas para vigiar os tais rapazes. Resultado: no primeiro sinal de desrespeito, aplicavam um golpe de capoeira. O público que assistia ao desfile não sabia o que estava acontecendo: só viam as baianas rodarem. 7. Olha o passarinho! Essa expressão vem do século XIX quando a fotografia foi inventada. Nessa época a tecnologia das câmeras fotográficas ainda engatinhava e a impressão da imagem no filme era bem lenta. As pessoas que iam ser fotografadas tinham que ficar imóveis por até 15 minutos até que a imagem fosse impressa na máquina. Se isso era desagradável para os adultos, para as crianças era particularmente difícil. Foi então que se teve a ideia de pendurar uma gaiola de passarinho atrás dos fotógrafos, para que o bichinho chamasse a atenção dos pequenos e eles ficassem imóveis. A expressão então ficou bastante conhecida e até hoje usada na fotografia. 8. Salvo pelo gongo Essa expressão, que significa ser salvo de uma encrenca nos últimos segundos, tem origem na Inglaterra. Tudo começou por não haver mais espaço para enterrar os mortos, então os caixões eram abertos, os ossos retirados e então levados para um ossário, e o túmulo ficava livre para ser usado por mais um defunto. Mas ao abrir alguns caixões os coveiros achavam arranhões no lado de dentro das tampas, o que indicava que o defunto em questão tinha sido enterrado vivo, já que a catalepsia era uma doença muito comum da época. Para evitar o problema eles começaram a amarrar uma tira no pulso do defunto, que passava por um buraco no caixão e era amarrado num sino. Por dois dias após a morte da pessoa, alguém ficava de plantão ao lado do túmulo. Se o sino tocasse, significaria que ela tinha sido literalmente salva pelo gongo. 9. Bode expiatório Essa expressão tem origem religiosa. Nas cerimônias hebraicas do Yom Kippur, o Dia da Expiação que acontecia na época do Templo de Jerusalém, um pobre animal era escolhido para ser apartado do rebanho e deixado ao relento na natureza selvagem como sacrifício, levando consigo todos os pecados da comunidade para serem expiados. Na Bíblia, essa cerimônia é descrita no livro do Levítico. Na teologia cristã, a figura do bode expiatório é um simbolismo para o sacrifício de Jesus, que deu a vida para salvar o mundo dos seus pecados. Hoje em dia a expressão perdeu sua carga religiosa, e é usada para descrever aquela pessoa que é escolhida, muitas vezes injustamente, para levar toda a culpa em situações em que as coisas não deram muito certo. 10. Sem eira nem beira Quando uma pessoa está “sem eira nem beira” ela está na pior, ao relento ou destituída do mínimo necessário para sobreviver. Para entender essa expressão, é preciso explicar as palavras: “eira” é um terreno de terra batida ou cimento onde grãos ficam ao ar livre para secar, e “beira” é a beirada da eira. Uma eira sem beira significa falta de proteção: assim os grãos eram levados pelo vento e o proprietário ficava de mãos vazias. O interessante é que na região Nordeste o ditado tem o mesmo significado, mas outra explicação semântica. Antigamente, as casas das pessoas mais abastadas tinham um telhado triplo: a eira, a beira e a tribeira, parte mais alta do telhado. As pessoas com menos condições não conseguiam fazer esse sofisticado telhado, construindo apenas a tribeira e ficando assim “sem eira nem beira”. Por isso, hoje utilizamos a expressão para designar pessoas destituídas de bens e de posses. Fonte: https://super.abril.com.br/blog/superlistas/veja-a-origem-de-10-expressoes-da-lingua-portuguesa/ https://outline.com/YgpES9 DECEMBER 21, 2016 - Por Darllam Cruz

24/5/21

 Abdias do Nascimento: conheça um dos maiores ativistas negros do Brasil

  • MARILIA MARASCIULO
 ATUALIZADO EM 
Abdias do Nascimento foi um dos maiores ativistas do movimento negro no Brasil (Foto: Paulo Moreira/Agência O Globo)Abdias do Nascimento foi um dos maiores ativistas do movimento negro no Brasil (Foto: Paulo Moreira/Agência O Globo)


Nascido em Franca, no interior de São Paulo, no dia 14 de março de 1914, Abdias do Nascimento foi uma das figuras mais proeminentes do movimento negro. Ao longo da vida, ajudou a fundar o Teatro Experimental do Negro (TEN), o Museu de Arte Negra (MAN) e o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro), todos no Rio de Janeiro. 

Artista, professor universitário e político, Nascimento viveu até os 94 anos e morreu no dia 24 de maio de 2011, vítima de complicações por diabetes. Relembre sua trajetória:

Infância

Neto de uma ex-escrava, Abdias cresceu em uma família pobre. Começou a trabalhar aos 9 anos de idade, entregando leite e carne nas casas dos moradores mais ricos. Aos 11, ingressou na Escola de Comércio do Ateneu Francano com uma bolsa de estudos batalhada pela mãe junto ao prefeito da cidade. Na instituição, se formou em contabilidade em 1928, aos 15 anos. No ano seguinte, em busca de melhores condições financeiras, alistou-se no exército e foi morar em São Paulo.

Militância e formação intelectual

No exército, combateu na revolução constitucionalista, entre 1930 e 1932. Ao todo, passou seis anos como militar, período em que, paralelamente, ingressou em dois movimentos: a Frente Negra Brasileira (FNB) e a Aliança Integralista Brasileira (AIB). Trabalhou como repórter no jornal integralista e teve um contato aprofundado com a cultura brasileira, a arte, a literatura e a economia. Deixou a AIB por discordar de uma facção racista dentro da organização. Embora anos depois tenha sido criticado por fazer parte de um movimento de viés fascista, Abdias nunca renegou esse período, que considerou importante para sua formação intelectual.

No Rio de Janeiro

Em 1936, Nascimento foi expulso do exército acusado de indisciplina por causa de desentendimentos com a polícia. Diante de um acirramento da intolerância aos movimentos negros em São Paulo, decidiu se mudar para o estado do Rio de Janeiro, instalando-se em Duque de Caxias. Foi no município fluminense que ele começou a ter um contato mais aprofundado com as religiões de matriz africana.

Em 1937, um ano depois de iniciar os estudos em economia na Escola de Comércio Álvares Penteado, transferiu-se para a Universidade do Rio de Janeiro (hoje, a UFRJ), onde cursou bacharelado em Ciências Econômicas. Também passou a militar em movimentos contra o Estado Novo e o imperialismo, o que lhe rendeu uma temporada de quatro meses na prisão.

Foi no Rio de Janeiro que Abdias do Nascimento teve sua formação artística. Vivendo o rico universo cultural carioca, em 1939 ele conheceu os poetas argentinos Efraín Tomás Bó, Juan Raúl Young e Godofredo Tito Iommi, e com eles fundou a Santa Hermandad de la Orquídea. Nos dois anos seguintes, o grupo viajou pelo Brasil e pela América Latina apresentando recitais, participando de saraus e acompanhando peças de teatro.

Abdias do Nascimento foi artista, professor universitário e político (Foto: Jorge Marinho /Agência O Globo)

Abdias do Nascimento foi artista, professor universitário e político (Foto: Jorge Marinho /Agência O Globo)

Salvar

Em Lima, capital do Peru, o brasileiro assistiu a uma encenação de O Imperador Jones, que trata da questão racial americana. A peça, porém, foi encenada por um grupo argentino inteiramente composto por atores brancos, e aqueles que interpretavam personagens negros eram pintados. Isso o fez refletir sobre a ausência de negros no teatro brasileiro.

De volta ao Brasil

Enquanto rodava o continente com a Santa Hermandad, Nascimento respondia judicialmente pela confusão com os policiais de 1936. Na volta para o Brasil, em 1943, foi condenado e passou a cumprir sentença em São Paulo, no presídio do Carandiru. Na casa de detenção, criou o Teatro do Sentenciado, grupo composto somente por prisioneiros negros. Foi solto em 1944 e imediatamente voltou para o Rio de Janeiro.

A partir de sua experiência na cadeia e das reflexões surgidas no episódio do Peru, fundou o Teatro Experimental Negro. E a primeira peça do grupo não poderia deixar de ser O Imperador Jones, só que, dessa vez, com um elenco inteiramente negro. Encenada em apresentação única no dia 18 de maio de 1945, foi um sucesso de público, embora tenha recebido críticas de cunho racista.

Militância ativa e exílio

Nas décadas de 1950 e 1960, Nascimento continuou com sua militância ativa, participando de congressos, encontros e protestos. Fundou um braço político do TEN, criou um jornal e organizou o primeiro Congresso Negro Brasileiro. Mas, com o Ato Institucional Número Cinco (AI-5), instituído pelos militares em 1968 proibindo, entre outras coisas, a militância negra, Abdias decidiu se exilar nos Estados Unidos. Lá, teve contato com os movimentos locais, como os Panteras Negras, deu aula em universidades e militou ativamente no pan-africanismo, movimento que propunha a união entre as nações africanas e as culturas decorrentes da diáspora deste continente. No exílio, também se dedicou com afinco à sua carreira de artista plástico.

Mais uma vez de volta ao Brasil

O exílio terminou em 1981, mesmo ano em que criou o Ipeafro (Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros). Com a reabertura política no ano seguinte, ele decidiu se candidatar a deputado federal no Rio de Janeiro pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), de Leonel Brizola. Foi eleito com a bandeira da luta contra o racismo. A partir daí, seguiu uma carreira política marcada pelo ativismo antirracista, com duas passagens pelo Senado, em 1991 e 1996. Recebeu ainda importantes reconhecimentos pela sua trajetória, como o Prêmio Toussaint Louverture pelos Extraordinários Serviços Prestados à Luta contra a Discriminação Racial, na sede da Unesco em Paris, em 2004.

Fonte: https://revistagalileu.globo.com/Sociedade/Historia/noticia/2020/09/abdias-do-nascimento-conheca-um-dos-maiores-ativistas-negros-do-brasil.html 

16/5/21

 Do jazz a Beyoncé, entenda como o afrofuturismo cria possibilidades de vida para a população negra

Movimento, que está presente na arte, na filosofia e na ciência, une ancestralidade africana e tecnologia para reconfigurar o imaginário global de que a negritude não está associada ao sucesso

Imagine uma viagem ao futuro, com elementos de alta tecnologia, mas, ao mesmo tempo, com toques de ancestralidade africana. Esse é o conceito do afrofuturismo, que há décadas protagoniza negros na arte, filosofia, teoria crítica e ciência. Mais do que uma corrente estética, o movimento levanta possibilidades de vivência negra em sociedades que não são marcadas pelo racismo e pela opressão, funcionando como crítica à realidade atual.

Nas histórias de filmes e séries ficcionais, o futuro está quase que completamente mecanizado, remetendo ao desenvolvimento de padrões de vida. A Wakanda de “Pantera Negra” é um exemplo famoso, ao misturar alta tecnologia e conexão com a ancestralidade. A partir deste conceito, a pesquisadora e especialista em afrofuturismo, Morena Mariah, explica que a ideia do movimento é reconfigurar o imaginário global de que a negritude não está associada à prosperidade e ao sucesso.

— Digamos que os negros foram abduzidos do continente africano e tratados como alienígenas nos territórios coloniais, ao serem escravizados sentem-se alienados de seu passado pelo apagamento histórico sistemático. Mas, a partir deste sentimento de alienação, produzem arte, filosofia, teoria crítica, movimentos políticos e sociais com objetivo de preservar sua cultura e resistir às constantes tentativas de genocídio — explica.

Apesar de o termo só ter sido cunhado na década de 1990 pela afro-americana Alondra Nelson, renomada escritora e socióloga, nos anos 1950 já existiam produções afrofuturistas na arte. Um dos principais nomes foi o compositor de jazz, poeta e “filósofo cósmico”, Sun Ra, pseudônimo usado por Herman Poole Blount, que afirmava ser de Saturno. Em suas composições, o artista misturava temas extraterrestres e futuristas com elementos da ancestralidade africana.

No entanto, segundo Morena, apesar dos mais de 20 anos do movimento, entre os brasileiros o conceito ficou esquecido por um tempo, voltando a ganhar força há cerca de cinco anos, por meio da iniciativa de jovens negros e negras das periferias.

— Apesar de ser necessário dialogar com pessoas mais velhas, hoje, é a juventude da favela, que é em sua maioria preta, que voltou a levantar a bandeira e formar uma potência. A gente tem o desejo de compreender nosso passado e construir a cidade e o modo de vida que queremos.

Fundadora do negócio de impacto social Afrofuturo, Morena apresenta o afrofuturismo nas comunidades como saída para criação de um imaginário onde negros sobrevivem à violência policial, à falta de oportunidades de estudos, aos salários menores e ao racismo institucional como um todo.

A rapper Helen N’zinga, que aborda o afrofuturismo em suas músicas, acredita que neste campo artístico é possível verbalizar as lutas e reivindicar o desejo de reparação histórica. Para tal, a cantora se inspira nos trabalhos do artista brasileiro Rincon Sapiência e de outros do exterior, como o rapper MHD e o duo feminino Oshun.

— No meu EP, eu retrato as pessoas pretas como sujeitos da história, pois a palavra tem o poder de criar a nossa realidade e a gente só visualiza aquilo que conseguimos falar. Então, por mais que não esteja tão em alta como novidade estética, o afrofuturismo é um recurso extremamente importante na música, no audiovisual e na pesquisa para projetar as pessoas negras no futuro — aponta.

Em seu disco denominado Nzinga Mbandi,  em homenagem a uma das rainhas de Dongo e Matamba, atual Angola, popularmente conhecida como Rainha Jinga, a rapper simboliza a luta da líder frente à colonização portuguesa. No clipe, Helen se veste a partir de um imaginário futurístico de como seria uma rainha angolana no século XXI: seu cabelo afro sendo a coroa, um olho mecanizado e o colar em metal, remetendo à tecnologia.

— Nesse trabalho, eu quis refletir a história das mulheres negras, que neste país são subalternizadas. Então fiz um resgate para refletir suas histórias, mas aquelas comuns como a da minha família, das pessoas do meu bairro, sob a representação da rainha Nzinga Mbandi, exemplo de resistência feminina e poder.

A sonoridade das músicas também leva conceitos afrofuturísticos, ao juntar diferentes ritmos afro populares e urbanos, como o jazz, trap e pagode baiano. Segundo Helen, seus raps carregam referências do passado e da atualidade, para unir e formar um som do futuro.

Para conhecer a arte afrofuturista:

MÚSICA:

Xênia França: cantora e compositora, Xenia fez sua estreia-solo na cena musical brasileira com seu álbum homônimo trazendo uma sonoridade essencialmente pop com toques de música eletrônica, jazz, samba-reggae, rock e R&B. Foi indicada ao Grammy Latino 2018 com seu maior sucesso “Pra que me chamas” e também para o Women Music Award 2018.

Karol Conká: grande nome do rap brasileiro e também da história do Big Brother Brasil 2021, a cantora traz em suas músicas o estilo futurista e referências africanas.

Beyoncé: o álbum visual “Black is King”, da cantora americana Beyoncé, se tornou um dos principais assuntos da esfera pop e do afrofuturismo. Da poderosa mensagem de orgulho negro às críticas pela maneira como retratou a África, a narrativa usa a fábula dos leões como ponto de partida para criar um panorama emocional, que costura elementos da história negra, referências a tradições africanas e imagens da África contemporânea.

LITERATURA:

Fábio Kabral: escritor afro-brasileiro de literatura fantástica e ficção científica. Seus livros abordam temas como sexualidade, ancestralidade africana, afrocentrismo e afrofuturismo. Entre os mais conhecidos estão “O caçador cibernético da rua 13” e “A cientista guerreira do facão furioso”.

Lu Ain-Zaila: escritora afrofuturista/sankofista, ativista social e pedagoga. Luciana, como também pode ser chamada, escreve no gênero cyberfunk – subgênero da ficção científica encontrado na trilogia”Matrix”, trazendo cenários de desigualdade, guerras, resistência das periferias, juntamente com o clima de festa e carnaval presente nas mesmas.

ARTES VISUAIS:

Cyrus Kabiru: conhecido por sua coleção de óculos, C – Stunners e suas fotografias de auto-retratos que o capturam usando suas criações. O trabalho de Kabiru trata da imaginação do futuro e da transformação da modernização

Krista Franklin: através da arte de colagens, ela aborda em seu trabalho uma mistura de poéticas, cultura popular e história da diáspora africana. Para isso, a artista utiliza elementos do fantástico, surrealismo, fotografia negra, mitologia e consciência coletiva.

AUDIOVISUAL:

Pantera Negra: o filme dirigido por Ryan Coogler acompanha T’Challa, que volta para a isolada e tecnológica nação africana de Wakanda para se tornar rei. Mas, com o aparecimento de um poderoso inimigo, os poderes do Pantera Negra são testados, colocando em risco o futuro de Wakanda, abundante em Vibranium, e de todo o mundo que cobiça o metal.

O último anjo da história: um ensaio fílmico dirigido por John Akomfrah sobre a estética negra que traça as ramificações da ficção científica dentro da cultura pan-africana. Akomfrah articula o uso de imagens, da nave espacial e do alienígena no trabalho de três músicos de gênio excêntrico – Sun Ra, George Clinton e Lee Perry –, para em seguida abordar a obra dos escritores da ficção científica negra Octavia Butler e Samuel Delany.

Branco sai, preto fica: no filme dirigido por Adirley Queirós, tiros em um baile de black music em Brasília ferem dois homens, que ficam marcados para sempre. Um terceiro vem do futuro para investigar o acontecido e provar que a culpa é da sociedade repressiva.

Fonte: https://www.geledes.org.br/do-jazz-a-beyonce-entenda-como-o-afrofuturismo-cria-possibilidades-de-vida-para-a-populacao-negra/ 

22/4/21

 Ensino da gramática deve abandonar dogmas e respeitar o português falado, defende Mario Perini

sexta-feira, 7 de maio de 2010, às 8h00

Para que se ensina gramática na escola? Se o objetivo é ensinar a escrever bem, não vale a pena. O raciocínio em forma de pergunta e resposta é do linguista e professor Mario Alberto Perini, crítico do que se denomina gramática tradicional e autor de diversos livros. Segundo ele, a gramática é ensinada de um ponto de vista não científico, como um conjunto de dogmas, sem espaço para debate. “Não é assim que se estuda biologia. Você faz experiências para validar a teoria. Assim, pode descobrir que um postulado está errado. Quando se trata da gramática, ao contrário, aquilo é verdade, e ponto final. Quem está errado é o mundo”, ele argumenta.

Perini vai abordar o assunto em palestra neste sábado, 8, a partir das 10h, na Faculdade de Letras, no campus Pampulha. A palestra – com o tema Ciência e pseudociência na tradição gramatical – é parte da série Letras Debate e terá como debatedora a professora Delaine Cafieiro Bicalho. Na ocasião, a editora Parábola vai lançar o último livro de Perini, Gramática do português brasileiro.

Mario Perini afirma que a gramática que se ensina na escola está muito longe do português que se fala, “é no máximo algo parecido com a língua escrita de cem anos atrás”. Ele exemplifica: enquanto as pessoas dizem normalmente “me dá ele”, os gramáticos insistem em pregar a forma “dá-mo”, que não se usa mais nem mesmo em textos formais.

Professor aposentado e hoje voluntário da Fale, Perini defende que as gramáticas se atualizem de acordo com as pesquisas realizadas nas últimas décadas. Sempre pronto a dar exemplos, ele lembra que as tradicionais cinco categorias de transitividades verbais (transitivo direto, indireto etc.) estão superadas. “Hoje podem-se analisar os verbos de diversas outras formas, para que se perceba uma série de diferenças no comportamento deles quando aparecem com e sem complemento”, ele ressalta. Além da complexidade das transitividades verbais, ele trata em seu último livro de assuntos como as diversas classes de advérbios (“as palavras sim e não são classificadas da mesma forma, mas têm usos diferentes”) e o reconhecimento de que são arcaicos o pretérito mais que perfeito (fizera, chegara) e a mesóclise (dar-lhe-ei).

Realidade da língua
As diversas obras utilizadas no ensino da gramática têm diferenças insignificantes, e os grandes problemas, segundo Mario Perini, estão em todas elas. “O ensino baseado nas ideias cristalizadas nesses livros faz de conta que a língua falada não existe e informa que falamos português errado. Mas como pode ser errada a língua que todo mundo fala?”, questiona o pesquisador, para quem, tirando pequenas distinções de nomenclatura, o conteúdo das gramáticas não muda há mais de um século.

Gramática do português brasileiro, segundo o autor, tem propostas de novas análises, extraídas de suas pesquisas e de outros estudiosos. Perini defende que se ensine gramática como disciplina científica – para isso é preciso contar com descrições mais de acordo com a realidade da língua e “ter atitude menos autoritária, que dê liberdade para o debate”.

Embora ressalte que a gramática não é simples – segundo ele, é ainda mais complexa do que aparece nos livros tradicionais –, Perini denuncia que ela tem noções mal definidas, e que falta coerência nas descrições. O autor volta a provocar: “Escola existe para dar educação ou para preparar para concursos?” De acordo com ele, provas de português de processos seletivos para empregos públicos incluem questões que equivalem a perguntar, num teste de medicina, sobre a forma de contrair malária e esperar como resposta “nos ares da noite”. “Pensávamos que Saturno tinha nove satélites, mas já se descobriu que são mais de 20, e é isso que se ensina hoje. Da mesma forma deve ser no campo da gramática”, reforça Perini (leia mais sobre ele em perfil publicado no Boletim UFMG).

O Letras Debate acontece quinzenalmente, aos sábados, das 10h às 12h, no auditório 1007 da Faculdade de Letras. Os eventos são voltados para alunos de graduação e para professores do ensino básico. Não há necessidade de inscrição. Veja programação do semestre. Outras informações pelos telefones (31) 3409-6009, 3409-6060 e 3409-6061; ou por e-mail: colgra@letras.ufmg.br.


http://www.ufmg.br/online/arquivos/015374.shtml

5/4/21

 PRÓCLISE, MESÓCLISE E ÊNCLISE

A primeira vez em que percebi que a língua poderia ser objeto de humor foi quando ouvi que dois homens procuraram um mestre gramático para resolver uma contenda. O primeiro garantia que o carro em que estavam se atolou. O outro insistia: o carro atolou-se.  O sábio elucidou a questão:

– Se foi com as rodas da frente, se atolou. Se foi com as de trás, atolou-se.

Ali estavam a próclise e a ênclise em toda a sua concretude, apoiando o pronome átono à frente do verbo ou por trás dele.

O problema é que eu nunca tinha ouvido falar em próclise, ênclise, pronome átono. Eu apoiava (ou atolava) o pronome onde me soava melhor, onde meu ouvido já estava mais acostumado.

Primeiro, foi preciso aprender que havia pronomes retos e oblíquos. Isso de misturar gramática e geometria foi outra revelação. Como pronomes poderiam ser inclinados, perpendiculares? Pois podiam: os do caso reto (eu, tu, ele/ela, nós, vós, eles/elas) tinham a prerrogativa de ser sujeito; os do caso oblíquo serviam só de complemento.

A próclise e a ênclise eram colocações dos oblíquos átonos (sim, tinha mais essa: os oblíquos podiam ser átonos ou tônicos).

Para o átono “me”, havia os tônicos “mim” e “comigo”. Para o “te”, havia “ti” e “contigo”. Na pirâmide social – imaginava – “eu” viria no topo; “me” estaria no meio; “mim/comigo”, ao rés do chão. Até porque “mim” nunca era sujeito, não conseguia andar sem preposição e sempre vinha (ou era impressão minha?) no final da frase.

O pronome átono não tem esse nome à toa: é sem tônus, sem vigor. Ele se deixa seduzir facilmente. É atraído pelos advérbios (“Aqui se faz, aqui se paga”).  Pelas partículas negativas (“Não me venhas de borzeguins ao leito! ”, “Nunca te vi, sempre te amei”, “Nem te ligo, farinha de trigo! ”). Pelos pronomes substantivos (“Todos se dão bem; só eu não tenho ninguém”). Pelos pronomes relativos (“Eles que se cuidem”). Por preposição seguida de gerúndio (“Em se plantando, tudo dá”). 

No Brasil, somos muito proclíticos. Mesmo quando deveria haver ênclise, a próclise nos soa melhor.

“Vou te contar, os olhos já não podem ver coisas que só o coração pode entender” era para ter uma ênclise, mas cadê?

“Me dê motivo pra ir embora, estou vendo a hora de te perder” também pedia ênclise. 

(Reza a lenda que o décimo primeiro mandamento era “Não começarás oração com pronome oblíquo”, mas ficou de fora porque iria desbancar o “Não cobiçarás a mulher do próximo” no quesito de popularidade nas confissões.)

A ênclise, coitada, acabou ficando para os verbos no imperativo afirmativo (“Ora, faça-me o favor! ”) e olhe lá. 

Mais rara que ela, só a mesóclise, que é quando o pronome átono não vem antes nem depois, em cima nem embaixo, mas enxertado no verbo. É que, muito antigamente, o futuro e o condicional (futuro do pretérito) eram compostos do verbo principal no infinitivo + o verbo “haver”.

“Terei” se formou de “ter” + “hei”; “teria”, de “ter” + “havia”. A mesóclise dar-se-á quando o pronome átono se enfiar entre as duas partes – por isso ela só existe nos tempos verbais em que há essa brecha.

Voltando ao catedrático do primeiro parágrafo, a história do carro atolado não acabava por ali. 

– Mestre, e se foi com as quatro rodas? 

– Então se atolou-se. 

Não, a proênclise só existe na piada – assim como a mesóclise só existiu, neste século, nos discursos de um ex-presidente. O que é uma pena, porque essa polifonia dos pronomes átonos e tônicos, esse balé dos pronomes retos e oblíquos, deixava muito mais refinado o idioma.

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EDUARDO AFFONSO

Arquiteto, escritor e colunista do jornal "O Globo".

Língua e Tradição. Educación. 07/02/2021. Página no Facebook [O objetivo desta página é, sobretudo, ressaltar a importância do estudo e ensino da gramática tradicional da Língua Portuguesa,  sem ignorar os avanços e inovações da Linguística]. https://www.facebook.com/story.php?story_fbid=241738567574757&id=102515961497019 

4/4/21

 SÓ UMAS PALAVRAS 

Antonio Prata - Folha de São Paulo 13/03/2021, p. B7.

As palavras, como as pessoas, têm seus altos e baixos. Às vezes os baixos são tão profundos que elas morrem. Ou ficam hibernando “em estado de dicionário”, como diria Drummond. Poucas causas são mais decisivas pro desmoronamento vernacular do que uma ascensão meteórica. “Glamour” era glamouroso quando eu nasci. Hoje soa como um figurino do Casal 20, esquecido no fundo de um armário. Já “armário” era um termo neutro, que foi ficando mais simpático quando dele pessoas puderam começar a sair. Hoje, ao pensar em armário, penso no hambúrguer do Ritz, na parada gay, num filme do Almodóvar.

Há termos que vão pra sarjeta sem nunca terem subido à ribalta. Depois da ocupação nazista, na França, “colaborador” (collaborateur) ficou para sempre sujo na praça, como todos aqueles que aceitaram sem revolta a invasão.

Em português, “colaborador” também tem sido uma palavra colaboracionista. Ao fingir que os empregados de uma empresa são seus “colaboradores”, o mercado (de bens e de símbolos) ajuda a dar a impressão de que essa selvageria trabalhista é uma Finlândia da Legoland. Não, queridão, o motoboy do aplicativo de entrega que não tem contrato, direitos, banheiro, água ou um salário decente não é “colaborador” da empresa, é um explorado. (“Explorado” é um termo que envelheceu mal. Foi uma vítima colateral da derrocada do PT. Uma pena, porque a exploração continua comendo solta no Brasil e no mundo. Quem sabe se a anulação das condenações do Lula no STF não ajuda como um “rebranding” de “explorado”?).

O politicamente correto, que trouxe grandes avanços, mas parece um tanto zureta nos últimos tempos, tem uma relação particular com as palavras. No início, coibia o uso de termos que soassem ofensivos a certos grupos. Faz todo o sentido. “Negão” ou “negrinho” ou “crioulinho” são usados majoritariamente de forma preconceituosa —começando pelo fato de se escolher a cor para definir a pessoa. 

Ultimamente, no entanto, estamos chegando num ponto em que nomear um grupo oprimido é ser opressor. Em inglês já não se deve mais dizer “judeus” (“jews”) e sim “jewish people”. É um paternalismo cujo tiro sai pela culatra. Ao proibir “judeus”, os ativistas da língua inglesa dão a entender que há algo de feio em “judeus”.

“Judeus” me leva à diáspora e daí pras línguas latinas: findo o império romano, as palavras pegaram suas trouxinhas e foram morar em outros lugares, ganharam outros status, sentidos e conotações. “Todavía” em castelhano é “ainda”. Em português é “contudo”. Carro em italiano é “machina”. Às vezes, chacoalhando nas viagens, as letras se embaralhavam. O erre de crocodilo, em português, foi parar lá na frente do “cocodrilo” castelhano. Ou terá sido o contrário?

Um dia resolvi ler o Dom Quixote. Comprei um em castelhano, com notas de rodapé para os termos mais antigos e em desuso. Comecei a ler e me surpreendi ao descobrir que a maioria das notas era pra explicar termos que morreram no espanhol, mas seguem vivos no português. “Yantar”, explicava uma nota, era “cenar” (jantar). Tinha até um “luego luego” do Sancho Pança, com a explicação de que significava “daqui a pouco”. Óbvio, entendi ali: quanto mais vamos pro passado num tronco linguístico, mais nos assemelhamos.

Era só isso, mesmo. Não chego a conclusão alguma sobre qualquer assunto. Eu estava com saudades de escrever uma “crônica, crônica”, sem rumo, sem razão de ser e sem as palavras “Bolsonaro” ou “genocida” ou “desespero”. Quase consegui.

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/antonioprata/2021/03/so-umas-palavras.shtml


30/3/21

Carreira: gestor de diversidade e inclusão começa a aparecer no alto escalão das empresas

A posição de D&I dobrou nos últimos cinco anos no LinkedIn; especialistas apontam que ter essa diretoria indica a visão futura da empresa

Texto: Curso Estado de Jornalismo Econômico / Ilustração: Bruno Ponceano

24 de março de 2021 | 09h50



















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