22/4/21

 Ensino da gramática deve abandonar dogmas e respeitar o português falado, defende Mario Perini

sexta-feira, 7 de maio de 2010, às 8h00

Para que se ensina gramática na escola? Se o objetivo é ensinar a escrever bem, não vale a pena. O raciocínio em forma de pergunta e resposta é do linguista e professor Mario Alberto Perini, crítico do que se denomina gramática tradicional e autor de diversos livros. Segundo ele, a gramática é ensinada de um ponto de vista não científico, como um conjunto de dogmas, sem espaço para debate. “Não é assim que se estuda biologia. Você faz experiências para validar a teoria. Assim, pode descobrir que um postulado está errado. Quando se trata da gramática, ao contrário, aquilo é verdade, e ponto final. Quem está errado é o mundo”, ele argumenta.

Perini vai abordar o assunto em palestra neste sábado, 8, a partir das 10h, na Faculdade de Letras, no campus Pampulha. A palestra – com o tema Ciência e pseudociência na tradição gramatical – é parte da série Letras Debate e terá como debatedora a professora Delaine Cafieiro Bicalho. Na ocasião, a editora Parábola vai lançar o último livro de Perini, Gramática do português brasileiro.

Mario Perini afirma que a gramática que se ensina na escola está muito longe do português que se fala, “é no máximo algo parecido com a língua escrita de cem anos atrás”. Ele exemplifica: enquanto as pessoas dizem normalmente “me dá ele”, os gramáticos insistem em pregar a forma “dá-mo”, que não se usa mais nem mesmo em textos formais.

Professor aposentado e hoje voluntário da Fale, Perini defende que as gramáticas se atualizem de acordo com as pesquisas realizadas nas últimas décadas. Sempre pronto a dar exemplos, ele lembra que as tradicionais cinco categorias de transitividades verbais (transitivo direto, indireto etc.) estão superadas. “Hoje podem-se analisar os verbos de diversas outras formas, para que se perceba uma série de diferenças no comportamento deles quando aparecem com e sem complemento”, ele ressalta. Além da complexidade das transitividades verbais, ele trata em seu último livro de assuntos como as diversas classes de advérbios (“as palavras sim e não são classificadas da mesma forma, mas têm usos diferentes”) e o reconhecimento de que são arcaicos o pretérito mais que perfeito (fizera, chegara) e a mesóclise (dar-lhe-ei).

Realidade da língua
As diversas obras utilizadas no ensino da gramática têm diferenças insignificantes, e os grandes problemas, segundo Mario Perini, estão em todas elas. “O ensino baseado nas ideias cristalizadas nesses livros faz de conta que a língua falada não existe e informa que falamos português errado. Mas como pode ser errada a língua que todo mundo fala?”, questiona o pesquisador, para quem, tirando pequenas distinções de nomenclatura, o conteúdo das gramáticas não muda há mais de um século.

Gramática do português brasileiro, segundo o autor, tem propostas de novas análises, extraídas de suas pesquisas e de outros estudiosos. Perini defende que se ensine gramática como disciplina científica – para isso é preciso contar com descrições mais de acordo com a realidade da língua e “ter atitude menos autoritária, que dê liberdade para o debate”.

Embora ressalte que a gramática não é simples – segundo ele, é ainda mais complexa do que aparece nos livros tradicionais –, Perini denuncia que ela tem noções mal definidas, e que falta coerência nas descrições. O autor volta a provocar: “Escola existe para dar educação ou para preparar para concursos?” De acordo com ele, provas de português de processos seletivos para empregos públicos incluem questões que equivalem a perguntar, num teste de medicina, sobre a forma de contrair malária e esperar como resposta “nos ares da noite”. “Pensávamos que Saturno tinha nove satélites, mas já se descobriu que são mais de 20, e é isso que se ensina hoje. Da mesma forma deve ser no campo da gramática”, reforça Perini (leia mais sobre ele em perfil publicado no Boletim UFMG).

O Letras Debate acontece quinzenalmente, aos sábados, das 10h às 12h, no auditório 1007 da Faculdade de Letras. Os eventos são voltados para alunos de graduação e para professores do ensino básico. Não há necessidade de inscrição. Veja programação do semestre. Outras informações pelos telefones (31) 3409-6009, 3409-6060 e 3409-6061; ou por e-mail: colgra@letras.ufmg.br.


http://www.ufmg.br/online/arquivos/015374.shtml

5/4/21

 PRÓCLISE, MESÓCLISE E ÊNCLISE

A primeira vez em que percebi que a língua poderia ser objeto de humor foi quando ouvi que dois homens procuraram um mestre gramático para resolver uma contenda. O primeiro garantia que o carro em que estavam se atolou. O outro insistia: o carro atolou-se.  O sábio elucidou a questão:

– Se foi com as rodas da frente, se atolou. Se foi com as de trás, atolou-se.

Ali estavam a próclise e a ênclise em toda a sua concretude, apoiando o pronome átono à frente do verbo ou por trás dele.

O problema é que eu nunca tinha ouvido falar em próclise, ênclise, pronome átono. Eu apoiava (ou atolava) o pronome onde me soava melhor, onde meu ouvido já estava mais acostumado.

Primeiro, foi preciso aprender que havia pronomes retos e oblíquos. Isso de misturar gramática e geometria foi outra revelação. Como pronomes poderiam ser inclinados, perpendiculares? Pois podiam: os do caso reto (eu, tu, ele/ela, nós, vós, eles/elas) tinham a prerrogativa de ser sujeito; os do caso oblíquo serviam só de complemento.

A próclise e a ênclise eram colocações dos oblíquos átonos (sim, tinha mais essa: os oblíquos podiam ser átonos ou tônicos).

Para o átono “me”, havia os tônicos “mim” e “comigo”. Para o “te”, havia “ti” e “contigo”. Na pirâmide social – imaginava – “eu” viria no topo; “me” estaria no meio; “mim/comigo”, ao rés do chão. Até porque “mim” nunca era sujeito, não conseguia andar sem preposição e sempre vinha (ou era impressão minha?) no final da frase.

O pronome átono não tem esse nome à toa: é sem tônus, sem vigor. Ele se deixa seduzir facilmente. É atraído pelos advérbios (“Aqui se faz, aqui se paga”).  Pelas partículas negativas (“Não me venhas de borzeguins ao leito! ”, “Nunca te vi, sempre te amei”, “Nem te ligo, farinha de trigo! ”). Pelos pronomes substantivos (“Todos se dão bem; só eu não tenho ninguém”). Pelos pronomes relativos (“Eles que se cuidem”). Por preposição seguida de gerúndio (“Em se plantando, tudo dá”). 

No Brasil, somos muito proclíticos. Mesmo quando deveria haver ênclise, a próclise nos soa melhor.

“Vou te contar, os olhos já não podem ver coisas que só o coração pode entender” era para ter uma ênclise, mas cadê?

“Me dê motivo pra ir embora, estou vendo a hora de te perder” também pedia ênclise. 

(Reza a lenda que o décimo primeiro mandamento era “Não começarás oração com pronome oblíquo”, mas ficou de fora porque iria desbancar o “Não cobiçarás a mulher do próximo” no quesito de popularidade nas confissões.)

A ênclise, coitada, acabou ficando para os verbos no imperativo afirmativo (“Ora, faça-me o favor! ”) e olhe lá. 

Mais rara que ela, só a mesóclise, que é quando o pronome átono não vem antes nem depois, em cima nem embaixo, mas enxertado no verbo. É que, muito antigamente, o futuro e o condicional (futuro do pretérito) eram compostos do verbo principal no infinitivo + o verbo “haver”.

“Terei” se formou de “ter” + “hei”; “teria”, de “ter” + “havia”. A mesóclise dar-se-á quando o pronome átono se enfiar entre as duas partes – por isso ela só existe nos tempos verbais em que há essa brecha.

Voltando ao catedrático do primeiro parágrafo, a história do carro atolado não acabava por ali. 

– Mestre, e se foi com as quatro rodas? 

– Então se atolou-se. 

Não, a proênclise só existe na piada – assim como a mesóclise só existiu, neste século, nos discursos de um ex-presidente. O que é uma pena, porque essa polifonia dos pronomes átonos e tônicos, esse balé dos pronomes retos e oblíquos, deixava muito mais refinado o idioma.

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EDUARDO AFFONSO

Arquiteto, escritor e colunista do jornal "O Globo".

Língua e Tradição. Educación. 07/02/2021. Página no Facebook [O objetivo desta página é, sobretudo, ressaltar a importância do estudo e ensino da gramática tradicional da Língua Portuguesa,  sem ignorar os avanços e inovações da Linguística]. https://www.facebook.com/story.php?story_fbid=241738567574757&id=102515961497019 

4/4/21

 SÓ UMAS PALAVRAS 

Antonio Prata - Folha de São Paulo 13/03/2021, p. B7.

As palavras, como as pessoas, têm seus altos e baixos. Às vezes os baixos são tão profundos que elas morrem. Ou ficam hibernando “em estado de dicionário”, como diria Drummond. Poucas causas são mais decisivas pro desmoronamento vernacular do que uma ascensão meteórica. “Glamour” era glamouroso quando eu nasci. Hoje soa como um figurino do Casal 20, esquecido no fundo de um armário. Já “armário” era um termo neutro, que foi ficando mais simpático quando dele pessoas puderam começar a sair. Hoje, ao pensar em armário, penso no hambúrguer do Ritz, na parada gay, num filme do Almodóvar.

Há termos que vão pra sarjeta sem nunca terem subido à ribalta. Depois da ocupação nazista, na França, “colaborador” (collaborateur) ficou para sempre sujo na praça, como todos aqueles que aceitaram sem revolta a invasão.

Em português, “colaborador” também tem sido uma palavra colaboracionista. Ao fingir que os empregados de uma empresa são seus “colaboradores”, o mercado (de bens e de símbolos) ajuda a dar a impressão de que essa selvageria trabalhista é uma Finlândia da Legoland. Não, queridão, o motoboy do aplicativo de entrega que não tem contrato, direitos, banheiro, água ou um salário decente não é “colaborador” da empresa, é um explorado. (“Explorado” é um termo que envelheceu mal. Foi uma vítima colateral da derrocada do PT. Uma pena, porque a exploração continua comendo solta no Brasil e no mundo. Quem sabe se a anulação das condenações do Lula no STF não ajuda como um “rebranding” de “explorado”?).

O politicamente correto, que trouxe grandes avanços, mas parece um tanto zureta nos últimos tempos, tem uma relação particular com as palavras. No início, coibia o uso de termos que soassem ofensivos a certos grupos. Faz todo o sentido. “Negão” ou “negrinho” ou “crioulinho” são usados majoritariamente de forma preconceituosa —começando pelo fato de se escolher a cor para definir a pessoa. 

Ultimamente, no entanto, estamos chegando num ponto em que nomear um grupo oprimido é ser opressor. Em inglês já não se deve mais dizer “judeus” (“jews”) e sim “jewish people”. É um paternalismo cujo tiro sai pela culatra. Ao proibir “judeus”, os ativistas da língua inglesa dão a entender que há algo de feio em “judeus”.

“Judeus” me leva à diáspora e daí pras línguas latinas: findo o império romano, as palavras pegaram suas trouxinhas e foram morar em outros lugares, ganharam outros status, sentidos e conotações. “Todavía” em castelhano é “ainda”. Em português é “contudo”. Carro em italiano é “machina”. Às vezes, chacoalhando nas viagens, as letras se embaralhavam. O erre de crocodilo, em português, foi parar lá na frente do “cocodrilo” castelhano. Ou terá sido o contrário?

Um dia resolvi ler o Dom Quixote. Comprei um em castelhano, com notas de rodapé para os termos mais antigos e em desuso. Comecei a ler e me surpreendi ao descobrir que a maioria das notas era pra explicar termos que morreram no espanhol, mas seguem vivos no português. “Yantar”, explicava uma nota, era “cenar” (jantar). Tinha até um “luego luego” do Sancho Pança, com a explicação de que significava “daqui a pouco”. Óbvio, entendi ali: quanto mais vamos pro passado num tronco linguístico, mais nos assemelhamos.

Era só isso, mesmo. Não chego a conclusão alguma sobre qualquer assunto. Eu estava com saudades de escrever uma “crônica, crônica”, sem rumo, sem razão de ser e sem as palavras “Bolsonaro” ou “genocida” ou “desespero”. Quase consegui.

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/antonioprata/2021/03/so-umas-palavras.shtml